sábado, 27 de novembro de 2010

O sol, o velho e a menina.

tradução de Diego Moschkovich


Os dias queimavam como fogo branco. A terra estava quente e as árvores também estavam quentes. A grama seca arranhava sob os pés.

Apenas de noitinha é que ficava fresco.

Então, na beira do riacho Katuni aparecia um antigo velhinho e sentava-se sempre no mesmo lugar - numa raiz - e olhava para o sol.

O sol se punha atrás das montanhas. À tarde ele era enorme, vermelho.

O velho se sentava imóvel. As mãos nos joelhos - da cor da terra, secas, cheias de terríveis rugas. O rosto era também enrugado, os olhos, úmidos e embaçados. Tinha o pescoço fino, a cabeça pequenina, branquinha. Por debaixo da camisa azul de chita sobressaíam-se escápulas pontiagudas.

Um dia, enquanto estava sentado, o velho ouviu uma voz atrás de si:

- Com licença, vovô!

O velho virou a cabeça.

Ao seu lado sentava-se uma menina com uma maleta estufada nas mãos.

- Você está descansando?

O velho novamente virou a cabeça.

- Estou descansando.

Não olhou para a menina.

- Posso te desenhar? - ela perguntou.

- Como assim? - não entendeu o velho.

- Fazer um retrato seu.

O velho por um tempo calou, olhou para o sol, piscou com suas pálpebras avermelhadas e sem сílios.

- Mas eu já não sou mais bonito - disse ele.

- Por quê? - a menina se confundiu um pouco. - Não, você é bonito sim, vovô.

- E ainda por cima doente.

A menina olhou longamente para o velho. Depois acariciou com palmas suaves sua mão seca e cor de terra. Ela disse:

- Você é bem bonito, vovô. De verdade.

O velho riu fraquinho.

- Então desenha, já que é assim.

A menina abriu a maleta.

O velho tossiu nas mãos.

- Da cidade, certamente. - perguntou ele.

- Da cidade.

- Pelo visto te pagam por isto?

- De vez em quando sim. Se faço bem, pagam.

- Então precisa se esforçar.

- Eu me esforço.

Silêncio.

O velho ainda olhava para o sol.

A menina desenhava, olhando para o rosto do velho de lado.

- Você é daqui, vovô?

- Daqui.

- E nasceu aqui?

- Aqui, aqui.

- E agora, quantos anos?

- De idade? Uns oitenta.

- Puxa!

- Bastante, - concordou o velho, soltando outro riso fraquinho. - E você?

- Vinte e cinco.

Silêncio de novo.

- Olha que sol! - baixinho exclamou o velho.

- Que sol? - não entendeu a menina.

- Gigante.

- Ah... é. É bem bonito aqui.

- E a água olha lá, vê... naquela margem ali...

- É, é.

- Parece que misturaram sangue.

- É. - a menina olhava para a margem. - É.

O sol tocara o cume do Altai¹ e começara a se esconder no distante mundo azul. E o quanto mais fundo ele descia, o mais nitidamente se delineavam as montanhas. Como se elas se movessem. No vale - entre o rio e as montanhas - quietamente se apagava o crepúsculo carmim. E tocava as montanhas uma calma e pensativa sombra. Então o sol se escondeu completamente atrás da corcunda do Buburkhão, e na mesma hora disparou no céu esverdeado um arco de vivos raios cor de laranja. O arco se mantivera por um momento - e quietamente apagou. No céu do outro lado começava a chamejar o crepúsculo.

- Se foi o nosso solzinho, - suspirou o velho.

A menina guardava as folhas na pasta.

Por algum tempo ficaram sentados apenas assim, ouvindo como as pequenas ondas apressadas quaravam nas margens do riacho.

Nas colinas a neblina se formava em grandes tufos.

No bosque, não muito ao longe, timidamente gritou algum pássaro noturno. E ouviu-se a resposta volumosa que veio da margem, do outro lado.

A menina pensava em como quando ela voltasse para sua longínqua e querida cidade, traria muitos desenhos. Entre eles, o retrato daquele velhinho. E seu namorado, desenhista de verdade, imediatamente iria se irritar: "Rugas, de novo! Para quê? Todo mundo sabe que na Sibéria o clima é árido e que as pessoas lá trabalham muito. E daí? O que mais?"

Ela sabia que não era muito talentosa. Mas vê, ela pensava na vida difícil que vivera aquele velho. Que mãos as dele! Rugas, de novo!

"É preciso trabalhar, trabalhar, trabalhar..."

- Você vem amanhã de novo, vovô? - perguntou ela ao velho.

- Venho. - respondeu este.

A menina se levantou e partiu para a aldeia.

O velho continuou sentado ainda mais uns instantes e depois também partiu.

Ele chegou em casa, sentou-se em seu cantinho, ao lado do forno e esperou quieto, - o momento em que chegaria do trabalho seu filho e em que sentariam-se para jantar.

O filho chegava sempre cansado, descontente com tudo. Sua noiva também, sempre estava descontente com tudo. Os netos haviam crescido e ido para a cidade. Sem eles a casa era angustiante.

Sentaram-se para o jantar.

Esfarelaram pão no leite para o velho e ele bebeu, sentado na beiradinha da mesa. Cuidadosamente tilintava a colher no prato, esforçando-se para não fazer barulho. Silêncio.

Depois se recolheram para dormir.

O velho se deitou aos pés do forno, e o filho com a noiva foram para o quarto. Silêncio. Falar sobre o quê? Todas as palavras já haviam sido ditas há muito.


Na próxima tarde o velho e a menina mais uma vez se sentavam na margem, perto da raiz. A menina desenhava apressadamente e o velho observava o sol e contava:

- Nós vivemos sempre direito, seria um pecado reclamar. Eu era forte, sempre tive trabalho suficiente. E meus filhos também eram fortinhos. Muitos morreram na guerra - quatro. Sobraram dois. E é com um deles que eu moro agora, com o Stepán. O Vánka mora na cidade, em Bíisk. Trabalha de pedreiro na construção civil. Ele me escreve: nada de mais, vivem bem. Vieram para cá, fizeram uma visita. Netos tenho de monte. Me amam. Estão espalhados pelas cidades, agora...

Ela desenhava as mãos do velho, apressada, nervosa, apagando frequentemente.

- E era difícil viver? - perguntou ela sem ter ouvido.

- Difícil o quê? - se espantou o velho. - Eu acabei de te dizer que a gente vivia bem.

- Não teve pena dos seus filhos?

- E como não? - se espantou mais uma vez o velho. - Enterrar quatro deles... é brincadeira, por acaso?

A menina não compreendia. Ou sentia pena do velho, ou então estava muito espantada com sua extrema calma e tranquilidade. E o sol mais uma vez se pusera atrás das montanhas. E de novo quietamente queimava o crepúsculo.

- Tempo ruim vai fazer amanhã - disse o velho.

- Por quê?

- Me dói tudo por dentro.

- Mas o céu está limpíssimo.

O velho calou.

- Você vem amanhã, vovô?

- Não sei, - não imediatamente respondeu o velho. - Alguma coisa me dói tudo por dentro.

- Vovô, como é que se chama esta pedra?- A menina tirou do bolso da jaqueta uma pedrinha branca com tons dourados.

- Qual? - perguntou o velho, continuando a olhar para as montanhas.

A menina lhe estendeu a pedra. O velho, sem se virar, tocou-a com as mãos.

- Esta? - perguntou ele, passando o olhar pela pedra, passando-a por entre os dedos secos e retorcidos. - É pepita isso. Na guerra, quando o fósforo acabava, era com isso que se acendia o fogo.

E uma curiosidade estranha tomou conta da menina: lhe parecia que o velho era cego. Ela não encontrou imediatamente sobre o que falar, calava, olhava de lado para o velho. E ele olhava lá para onde o sol se punha. Calma e pensantemente olhava.

- Pega aqui, a pedrinha. - disse ele e estendeu a pedra à menina. - E tem de diferentes formas também. Tem uma tão branca que brilha, com uns pontinhos por dentro. Também tem uma que é como um ovinho, não dá para saber a diferença. Tem outra que se parece com um ovo de gralha, com listrinhas dos lados, e outras que se parecem com ovo de pardal, azulzinhas, também com pintinhas.

A menina olhava para o velho e não se decidia perguntar se ele era cego ou não.

- Aonde você mora, vovô?

- Aqui pertinho. Aquela é a casa de Ivan Kolokólnikov, - o velho mostrava a casa na margem do rio. - Depois, a dos Bedárev, depois a dos Volokítin, a dos Zinovév e ali na curvinha - a nossa. Apareça, se precisar de alguma coisa. Quando moravam os netos, aí era tudo bem alegre.

- Obrigada.

- Eu me vou. Me dói tudo.

O velho se levantou e partiu pela trilha pela montanha. A menina o observou até o momento em que ele sumiu na curva. Ele não batera nenhuma vez, não tropeçara nenhuma vez. Andava devagar e olhava para os pés.

"Não, não é cego", entendeu a menina. "Só tem a visão fraca."

No dia seguinte o velho não apareceu. A menina se sentara sozinha, pensando nele. Tinha algo na vida dele, tão simples, tão comum que não era nada simples, grande, significativa. "O sol, também, simplesmente nasce e se põe" pensava ela. "Como se fosse simples!" E ela olhou fixamente para seus desenhos. E se entristeceu.

O velho também não apareceu no terceiro e nem no quarto dia.

A menina resolveu ir procurar sua casa.

Encontrou.

No jardim da casa de cinco paredes, coberta com telhado de metal, num canto sob um dossel, um homem adulto de uns cinquenta anos talhava numa bancada uma tábua de pinho.

- Com licença. - disse a menina.

O homem se endireitou, olhou para a menina, arrastou o dedo maior sobre a testa suada e acenou.

- Oi.

- Me diga, por favor, é aqui que vive um vovozinho...

O homem olhou para a menina atenciosamente e meio estranho. Ela calava.

- Morava. - disse o homem, - Esse é o caixão que estou construindo para ele.

- Ele morreu, foi?

- Acabou de morrer. - e o homem de novo se curvou em direção à tábua, raspou mais algumas vezes com o aplainador e depois olhou para a menina. - E você queria o quê?

- É que eu estava desenhando ele...

- Ah... - e o homem bruscamente raspou o aplainador.

- Me diga, por caso ele era cego? - perguntou a menina depois de longo silêncio.

- Cego.

- Fazia tempo?

- Uns dez anos. Por quê?

- Nada...

A menina saiu do quintal.

Na rua se encostou na cerca e chorou. Sentia pena do vovô. E sentia pena pois ela não havia conseguido de forma nenhuma desenhá-lo. Mas ela sentia agora algum sentido e um segredo mais profundos nas vidas e feitos dos homens, e sem mesmo entender, se tornara um pouco mais adulta.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O Estudante.

de A. Tchékhov
(tradução de Diego Moschkovich)

O tempo no começo estava bom, quieto. Gritavam os melros, e às vizinhanças do brejo algo zumbia queixosamente, como se alguém soprasse numa garrafa vazia. Apareceu um galináceo e o tiro que levou ecoou pelo ar primaveril cortante e alegre. Mas depois, quando escureceu na floresta, do leste inadequadamente soprou um vento frio e tudo silenciou. Pelas poças se espalhavam agulhas de gelo e na floresta tudo se tornara desconfortável, mudo e hostil. Cheirou a inverno.

Ivan Velikopólski, estudante seminarista, filho do diácono, voltando tarde para casa caminhava a todo tempo pela trilha entre o pântano. Seus dedos se entorpeciam e seu rosto queimava ao vento. Lhe parecia que aquele vento repentino chegara para destruir toda a ordem e o consentimento, tão estranhamente à própria natureza e que, por causa disso a escuridão da noite engrossara mesmo antes do que devia. Os arredores estavam desertos e especialmente sombrios. Apenas nas hortas das viúvas na beira do rio luzia um fogo; e lá longe, onde ficava a aldeia, a umas quatro verstas, tudo mergulhava inteiramente no gelado breu da noite. O estudante se lembrou de como ao sair de casa sua mãe, sentada no chão, descalça, limpava o samovar, de como seu pai se deitava aos pés do forno, tossindo, de como por ocasião da sexta-feira da paixão não se cozinhava nada em casa e de como dolorosamente se queria comer. E então se encolhendo de frio, pensou em como aquele mesmo vento já soprava nos tempos de Riúrik, e depois nos tempos de Ivan o Terrível e também dos tempos de Pedro, o Grande, e em como existia então também a mesma pobreza feroz, a fome, os mesmos telhados esburacados de palha, a ignorância, a angústia, aquele mesmo deserto ao redor, as trevas, o sentimento de opressão. Todos estes horrores existiam, existem e existirão, e assim poderiam se passar mais mil anos e a vida não se tornaria melhor. E ele não queria ir para casa.

As hortas se chamavam "das viúvas" porque continham duas viúvas, mãe e filha. Uma fogueira queimava calorosamente, aos estalidos, iluminando longe a terra lavrada. A viúva Vacilíssa, velhota alta e gorda metida num capote masculino, estava em pé de lado e pensativamente olhava para o fogo; sua filha, Lukéria, pequena, sardenta, de rosto estúpido, se sentava na terra e lavava um caldeirão e algumas colheres. Obviamente haviam acabado de jantar. Ouviam-se vozes masculinas, e eram dos serviçais do lugar que davam de beber aos cavalos no rio.

- Olhem só, não é que o inverno voltou atrás? - disse o estudante, se aproximando da fogueira. - Saudações!

Vacilíssa se assutara, mas logo em seguida se lembrou de quem se tratava e sorrira amigavelmente.

- Nem reconheci, faça fortuna!1 - disse ela.- Deus o guarde.

Conversaram. Vacilíssa - mulher experiente, servira um senhor por algum tempo como ama de leite e depois como babá - se expressava delicadamente e de seu rosto saía constantemente um sorrisinho leve, aos poucos; já sua filha, Lukéria, mulher de aldeia, espancada pelo marido, apenas olhava vesga para o estudante e calava, possuindo uma espressão um tanto estranha em sua face, como a de uma surdomuda.

- Desta mesma forma numa noite fria se esquentou na fogueira o apóstolo Pedro, - disse o estudante, estendendo as mãos para o fogo. - Ou seja, naquela época também fazia frio. Ah, mas que noite mais estranha, vovó. Uma noite extraordinariamente triste e longa!

Ele olhou ao redor para a escuridão, deu um espasmo com a cabeça e perguntou:

- Suponho que você já foi às leituras dos doze evangelhos?

- Fui - respondeu Vacilíssa.

- Se se lembra, durante a última ceia Pedro disse a Jesus: "Contigo eu estou pronto para ir até a escuridão, e até a morte." E o senhor lhe respondeu: "Te digo, Pedro, não cantará o galo hoje até que você me tenha negado três vezes, dizendo que não me conhece." Após a ceia, enquanto Jesus se angustiava mortalmente no jardim, o pobre Pedro, de alma cansada, enfraquecera-se, sentira os anos pesarem em suas costas e não conseguira de jeito nenhum lutar contra o sono. Adormeceu. Depois, você já ouviu: Judas na mesma noite beijou Jesus e o traiu com seus inimigos. O levaram então acorrentado até o sacerdote e o espancaram, e Pedro, prostrado, incomodado pela angústia e pela ansiedade, entende, sem ter dormido, tendo pressentido que aqui na terra estava para acontecer algo terrível, seguiu. Ele amava Jesus apaixonada e imemoravelmente, e agora via de longe como o espancavam.

Lukéria deixara as colheres e agora direcionava um olha fixo ao estudante.

- Chegaram ao sacerdote, - continuava - começaram a interrogar Jesus e ao mesmo tempo os trabalhadores acenderam no meio do pátio um fogo, pois estava frio, e se esquentavam. Perto da fogueira com eles estava Pedro, e se esquentava, assim como eu, agora. Uma mulher, vendo-o disse: "Este aqui também estava com Jesus", ou seja, ele, puxa, precisava ser levado ao interrogatório. E todos os trabalhadores que se encontravam por perto da fogueira, deve ser, olharam desconfiados e severos para ele, porque Pedro se incomodara e dissera: "Não o conheço." Um pouquinho depois mais alguém reconheceu nele um dos discípulos de Jesus e disse: "Você também é um deles." Mas Pedro mais uma vez negou. E pela terceira vez alguém se dirigiu a ele: "Não foi você que vi com ele hoje no jardim?" E Pedro negou pela terceira vez. Depois disto, imediatamente cantou o galo e Pedro, assistindo de longe a Jesus lembrou-se das palavras que este lhe dissera na ceia. Lembrou, voltou a si, saiu do pátio e amargo, amargo chorou. Nos evangelhos está escrito: "E partira, chorando amargamente.". Eu fico imaginando: o jardim quieto, quieto, escuro, escuro, na escuridão mal se ouve o chorinho surdo...

O estudante suspirou e pensou. Continuando a sorrir, Vacilíssa de repente soluçou e lágrimas grandes e abundantes escorriam por suas bochechas, e ela afastou com as mãos o rosto do fogo, como que com vergonha de suas próprias lágrimas. Lukéria, olhando fixamente para o estudante corou, e sua expressão se tornou pesada, tensa, como numa pessoa que suporta uma dor imensa.

Os serviçais voltavam do rio, e um deles montado num cavalo já estava perto, e a luz do fogo tremeluzia em sua figura. O estudante desejou às viúvas uma boa noite e seguiu em frente. E mais uma vez rodearam-no as trevas, e os dentes começaram a tremer. Soprava um vento cruel, e de fato retornava o inverno, não parecendo em nada que depois de amanhã seria já Páscoa.

Agora o estudante pensava em Vacilíssa: se ela havia chorado, tudo o que havia acontecido naquela noite estranha com Pedro fazia para ela algum sentido...

Olhou em torno. O fogo solitário calmamente piscava na escuridão, e ao seu redor já não se viam as pessoas. O estudante novamente pensou que, se Vacilíssa chorara, e sua filha se incomodara, então obviamente aquilo que contara, ocorrido dezenove séculos atrás, possuía relação com o presente - com as duas mulheres, e claro, com aquela aldeia deserta, com ele próprio, com todos os homens. Se a velhinha havia chorado, não havia sido porque ele sabia contar histórias tocantemente, mas porque Pedro lhe era próximo, e porque ela, com todo o seu ser se interessara por aquilo que havia ocorrido na alma de Pedro.

E uma alegria de repente levantou-se em sua alma, e ele até mesmo teve de parar por um minuto, para recobrar o fôlego. O passado, ele pensava, está ligado ao presente por uma corrente ininterrupta de acontecimentos, que brotam um do outro. E a ele lhe pareceu que acabara de ver ambos os finais desta corrente: tocara a um deles, recuando assim do outro.

E quando se aprumara no barquinho para cruzar o rio, e depois, levantando-se pela montanha avistara sua aldeia natal e o leste, por onde luzia numa faixa fina a gélida aurora carmim, pensou que a verdade e a beleza, que haviam dirigido a vida dos homens lá no jardim e no pátio do sacerdote continuavam ininterruptamente até os dias de hoje, e, ao que lhe parecia, sempre constituiriam o principal na vida humana e na Terra de forma geral; e a sensação de juventude, saúde, força - ele tinha apenas vinte e dois anos - e a inexpressável doce espera da felicidade, da invisível e secreta felicidade tomaram conta dele aos pouquinhos, e a vida lhe parecera deliciosa, maravilhosa, e cheia do sentido mais elevado.


1Faça fortuna: trata-se de uma antiga superstição russa que diz que a pessoa que não for reconhecida num encontro enriquecerá.

(Nota da tradução: "O estudante" foi escrito por Anton Pávlovich Tchékhov em 1894.)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Odisseu a Telêmaco.

de Jôsef Bródski.
(tradução livre de Diego Moschkovich)

Meu Telêmaco,
A guerra de Tróia
acabou. Quem ganhou - não me lembro.
Devem ter sido os gregos: afinal,
só gregos deixariam tantos cadáveres
espalhados fora de casa.
E ainda assim, o caminho para casa
se mostrou longo demais,
como se Posêidon tivesse, enquanto perdíamos
tempo, alargado o espaço.
Já não sei onde estou,
o que há diante de mim. Uma ilha
imunda, mato, casas, grunhidos de porco,
um jardim abandonado, uma imperatriz,
grama e mais pedras... Querido Telêmaco,
todas as ilhas se parecem umas com as outras
quando se anda tanto
e o cérebro funde contando as ondas,
os olhos choram, entulhados de horizonte
e a carne das águas entope os ouvidos.
Não me lembro mais como terminou a guerra
ou de quantos anos tens - não lembro.
Cresça forte, meu Telêmaco, cresça.
Só os Deuses sabem se nos encontraremos outra vez.
Você agora já não é mais a criança
para quem domei os touros.
Se não fosse por Palâmedes, viveríamos juntos.
Mas talvez ele estivesse certo:
sem mim você está livre das paixões de Édipo,
e teus sonhos, meu Telêmaco, são puros.
--1972

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Zero zero inteiros.

de Vassíli Shukshin
(tradução Diego Moschkovich)

Kólka Skálkin chegara ao escritório do sovkhoz1 para pegar a conta. O diretor no dia anteriorhavia brigado com Kólka porque ele ousava “naquele tempo produtivo...” - “Para você o temposempre é produtivo! Só o salário que continua improdutivo!” E o diretor lhe dera a nota: “Demitirpor vontade própria”. Faltava resgatar a carteira de trabalho. E era exatamente a carteira de trabalho que Kolka viera resgatar.
Quem deveria entregar-lhe a carteira era um tal de Viachesláv Mikhailovich Silnélnikov, senhor não muito magro, de rosto pequeno e seboso, sobrancelhas e terno brancos. Sinélnikov era novato, e Kólka já escutara boatos de que era um caxias.

- Por que a demissão? - Sinélnikov olhou cansadamente para Kólka.

- Pagam pouco.

- Quanto?

- Quanto o quê?

- Quanto para você é pouco?

- Sessenta, setenta. Às vezes até menos...

- Hm. E exatamente de quanto você precisa?

Kólka começava a se irritar.

- Eu? De três vezes isso.

Sinélnikov não sorriu e nem se admirou com a insolência de Kólka.

- Não é suficiente, então?

- Não é nem que não é suficiente, chega a ser vergonhoso: tenho braços e pernas saudáveis, nunca tive preguiça de trabalhar e... bah! - Kólka reclamava muito do seu salário, se incomodava, não gostava nada da diretoria do sovkhoz e por isso não estava mais afim de chover no molhado.

- É isso.

- E agora, para onde?

- Agora? Cavar buracos para fundações. No quilômetro trinta e sete.

- Especialização no bolso... e... cavar buracos para fundações! Você é um motorista de segunda classe!

- Fazer o quê?

- Beber menos vodka. - Sinélnikov falava da mesma forma indiferente, fraca, e sem qualquer interesse olhava para Kólka. Impossível entender por que raios ele abria a boca, perguntava.

Kólka se fixou nos pequenos olhos cinza de Sinélnikov, inflou as narinas e disse (como depois afirmara para todos) educadamente:

- Quero na mesa minha carteira de trabalho. Sem burocratismo. Sem essas, sabe, coisinhas.

- Quais, essas “sabe”, coisinhas?

- Eu não vim ter aula, certo? Vim pegar minha carteira de trabalho.

- E uma aula não seria nada mal, diga-se de passagem. Não veio ter aula... Para se entupir de vodka o dinheiro sobra, mas aqui, olha só, pagam pouco – estranhamente Sinélnikov não se agitava nem neste momento, não falava de alguma outra maneira... mais rápido, mais maldoso, nem mesmo franzia a testa. - Bebuns. E mamam, mamam, mamam essa vodka! Como é que não se cansam? Dá para ficar louco! Bebuns infelizes.

Por essa Kólka não merecera. Ele bebia, claro, mas assim para ser chamado de “bebum” e ainda “infeliz”... não, que absurdo. No entanto mais estranho ainda é que não eram as palavras que irritavam Kólka mas sim o tom monocórdico, desanimado e bovino com que os dois se falavam, como se fosse alguém desesperançosamente ruim, incorrigível, como se já estivessem cansados dele e não quisessem com nem mesmo se irritar, dessa forma, falando como se fosse obrigação, já sem qualquer esperança.

- Que porcaria é essa, hã? - se incomodou Kólka – O quê? Bebeu tinta foi? Foi o quê que começou a dar coice? Olha só, sentou aí em cima e vamos lá, dar chibatadas nos outros! Quer o quê? Não tem mais nada para fazer não, seu burocrata?

Sinélnikov ouvia tudo calmamente, como numa reunião: ele até mesmo apoiara a cabeça com as mãos, como se faz nos auditórios quando se escuta uma costumeira e inofensível crítica.

- Continue.

- Eu vim pegar a minha carteira de trabalho, não tenho nada que continuar. A ordem de demissão foi assinada? Assinada. Agora a carteira de trabalho.

- Você quer que eu te meta uma advertência?

- Pelo quê?

- Revolta. Indisciplinaridade... Uma pequeeena notinha na sua carteira e você dança, bonitão. - Sinélnikov se divertia com o nervosismo de Kólka, mas mesmo assim se divertia de uma maneira desanimada, inexpressiva. Kólka, por sua vez, se segurava.

- E pelo quê você me dá uma advertência?

- Escrevo a nota, aí você chega para tapar teus buracos e te dizem: “Opa, não não não queridão, que que é isto aqui? Não, não precisamos desses aqui, não.” E pronto. Lá se vão seus duzentos rublos tapando buracos. Não empina muito o nariz não que ele começa a escorrer, seu bostinha.

- Quem? - perguntou Kólka. - Que foi que você disse?

- “Quem” o quê?

- Eu? O que você disse?

- Bostinha, eu disse.

Kólka agarrou o tinteiro com e arremessou a tinta no terno branco de Silnélnikov. E assim acontecera tudo... Kólka nem sequer havia conseguido parar para pensar quando apanhara o tinteiro... atirou, e ponto. Sinélnikov tirou as mãos no rosto. Pensou um instante e rapidamente tirou o paletó, mantendo-se em pé com os braços esticados, de modo a esperar a tinta escorrer até o chão. A tinta escorrida, Sinélnikov cuidadosamente sacudiu o paletó, esperou mais um pouco e depois pendurou-o nas costas da cadeira. Depois disso verificou a camisa e as calças: não, não dera tempo de escorrer para a camisa e as calças ainda estavam limpas.

- Bem... escolha: vinte rublos pela lavagem a seco e pela tinturaria de todo o traje ou eu teprocesso por ofensa violenta.

- Você me ofendeu primeiro...

- Eu sim, mas com palavras, ninguém ouviu... agora a tinta, olha aí, na cara. Além do mais, tinta sintética. - E de novo o tom de Sinélnikov era chapado, incolor. Que pessoa impressionante! - Sua sorte é que eu já queria mesmo mandar pintar. Mas não sei nem se vão aceitar na lavanderia com tinta sintética... Vinte e cinco rublos. - Sinélnikov desenganchou o telefone. - Escolha. Ou eu ligo para a polícia.

Kólka já tinha entendido que era melhor pagar. Mas o incomodava o fato de que o legalistazinho na estava aumentando o preço na cara dura.

- Epa, por quê vinte e cinco? Primeiro vinte e depois assim, vinte e cinco? A gente ficando aqui um pouco mais e você sobe até cinquenta?

- Cinco rublos é a ida até a cidade. Ida e Volta. Não tinha pensado nisso logo que falei.

- Quê? Dois e meio por um dos sentidos? Qualquer caminhoneiro te leva de carona por cinquenta copeques!

- Não quero ir de carona. Posso ir de carona, mas na volta pego um taxi.

- Opa, olha o barão aí! “De táxi!”

- Isso, de táxi. Porquê, algum problema?

- Não, nenhum, mas assim às custas dos outros... Vai dizer que não se envergonha!

- Você me sujou de tinta – você não se envergonha? E mais, eu, pelo meu próprio traje vou me pendurar na carroceria de algum caminhão? Vinte e cinco. Pode escrever.

- O quê?

- O termo.

Sinélnikov entregou-lhe uma folha de papel.

Kólka com desgosto a apanhou...

- Como escrever então?

- Eu, fulano de tal – nome, sobrenome – me comprometo a pagar ao camarada Sinélnikov Viachesláv Mikháilovich vinte e cinco, travessão – rublos e zero zero copeques...

Kólka sorriu maliciosamente, balançando a cabeça.

- “Zero zero copeques”! Mandãozinho de merda...

- Zero zero copeques pelo estrago deliberado de traje branco do camarada Sinélnikov V.M.

Kólka parou de escrever.

- Para quê escrever “deliberado”? Já que eu estou concordando em pagar de boa vontade,para quê escrever assim? Alguém depois vai ler e aí vão começar a … encher o saco.

- Tá bom, escreve “pelo estrago de traje do camarada... pelo estrago de traje branco docamarada Sinélnikov V.M.”

Kólka ao escrever pulara a palavra “camarada”. Anotara apenas: “traje branco de Sinélnikov V. M.”.

- ...Com tinta sintética...

Kólka pegou o tinteiro e o examinou.

- Por caso caneta-tinteiro leva tinta sintética?

- Claro! Nós escrevemos as folhas de balanço apenas com tinta sintética.

- Escritores, saco... - resmungou Kólka.

- Assinatura, data.

Kólka assinou. Colocou a data. Sinélnikov pegou o papel.

- Quanto você recebe?

- Como é que vou saber? Você é quem sabe.

- Venha depois do almoço para receber. E para pegar a carteira.

Kólka se levantou.

- Você... olha, não fale para ninguém que... me arrancou vintão. Chega nos ouvidos da mulher e daí... sabe lá... Escreve alguma coisa aí.

- Certo.

Kólka foi até a porta. Chegando ao batente parou e olhou para o homem gordo de sobrancelhas brancas. Sinélnikov também olhava para Kólka.

- O quê?

- Êê... - disse Kólka, abaixou a cabeça e saiu da sala.

No corredor xingava baixinho para si mesmo.

“Vintão... saí com o rabo entre as pernas. Enrolado entre as pernas”. Mas então ele se lembrou de que na estrada agora iria ganhar de duzentos a duzentos e cinquenta rublos tapando buracos, e se acalmou. “Ah, que se queimem todos no inferno – pensou – e chega de reclamar!”

1 sovkhoz: abreviação de soviétskoe khoziáistvo, nomeclatura usada para designar fazenda coletiva controlada pelo Estado na antiga URSS.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Quase uma Elegia.

(tradução livre de Diego Moschkovich)

Em dias passados eu também
esperei a chuva fria passar
escondido sob as colunas da Bolsa.
E achava que era um Presente de Deus.
Talvez estivesse certo.
Eu fui sim feliz algum dia.
Vivia no cativeiro dos anjos,
enfrentava vampiros.
Espiava - feito Jacó -
uma beldade de vestido correndo
pelas escadas.

Para onde na eternidade tudo isso foi.
Se encondeu. Escrevendo "para onde" eu
nem mesmo coloco o ponto de interrogação.
É setembro. Diante de mim - um jardim.
Um trovão longínquo se deposita nos ouvidos.
E na folhagem densa a pêra madura
pendurada pelos ramos como falo viril.
E só a tempestade adormecida em meus ouvidos.
Como na cozinha de parentes distantes, avarento,
meu ouvido deixa o instante passar:
ainda não é música, mas já não é mais barulho.
-- Outono de 1968