segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O Estudante.

de A. Tchékhov
(tradução de Diego Moschkovich)

O tempo no começo estava bom, quieto. Gritavam os melros, e às vizinhanças do brejo algo zumbia queixosamente, como se alguém soprasse numa garrafa vazia. Apareceu um galináceo e o tiro que levou ecoou pelo ar primaveril cortante e alegre. Mas depois, quando escureceu na floresta, do leste inadequadamente soprou um vento frio e tudo silenciou. Pelas poças se espalhavam agulhas de gelo e na floresta tudo se tornara desconfortável, mudo e hostil. Cheirou a inverno.

Ivan Velikopólski, estudante seminarista, filho do diácono, voltando tarde para casa caminhava a todo tempo pela trilha entre o pântano. Seus dedos se entorpeciam e seu rosto queimava ao vento. Lhe parecia que aquele vento repentino chegara para destruir toda a ordem e o consentimento, tão estranhamente à própria natureza e que, por causa disso a escuridão da noite engrossara mesmo antes do que devia. Os arredores estavam desertos e especialmente sombrios. Apenas nas hortas das viúvas na beira do rio luzia um fogo; e lá longe, onde ficava a aldeia, a umas quatro verstas, tudo mergulhava inteiramente no gelado breu da noite. O estudante se lembrou de como ao sair de casa sua mãe, sentada no chão, descalça, limpava o samovar, de como seu pai se deitava aos pés do forno, tossindo, de como por ocasião da sexta-feira da paixão não se cozinhava nada em casa e de como dolorosamente se queria comer. E então se encolhendo de frio, pensou em como aquele mesmo vento já soprava nos tempos de Riúrik, e depois nos tempos de Ivan o Terrível e também dos tempos de Pedro, o Grande, e em como existia então também a mesma pobreza feroz, a fome, os mesmos telhados esburacados de palha, a ignorância, a angústia, aquele mesmo deserto ao redor, as trevas, o sentimento de opressão. Todos estes horrores existiam, existem e existirão, e assim poderiam se passar mais mil anos e a vida não se tornaria melhor. E ele não queria ir para casa.

As hortas se chamavam "das viúvas" porque continham duas viúvas, mãe e filha. Uma fogueira queimava calorosamente, aos estalidos, iluminando longe a terra lavrada. A viúva Vacilíssa, velhota alta e gorda metida num capote masculino, estava em pé de lado e pensativamente olhava para o fogo; sua filha, Lukéria, pequena, sardenta, de rosto estúpido, se sentava na terra e lavava um caldeirão e algumas colheres. Obviamente haviam acabado de jantar. Ouviam-se vozes masculinas, e eram dos serviçais do lugar que davam de beber aos cavalos no rio.

- Olhem só, não é que o inverno voltou atrás? - disse o estudante, se aproximando da fogueira. - Saudações!

Vacilíssa se assutara, mas logo em seguida se lembrou de quem se tratava e sorrira amigavelmente.

- Nem reconheci, faça fortuna!1 - disse ela.- Deus o guarde.

Conversaram. Vacilíssa - mulher experiente, servira um senhor por algum tempo como ama de leite e depois como babá - se expressava delicadamente e de seu rosto saía constantemente um sorrisinho leve, aos poucos; já sua filha, Lukéria, mulher de aldeia, espancada pelo marido, apenas olhava vesga para o estudante e calava, possuindo uma espressão um tanto estranha em sua face, como a de uma surdomuda.

- Desta mesma forma numa noite fria se esquentou na fogueira o apóstolo Pedro, - disse o estudante, estendendo as mãos para o fogo. - Ou seja, naquela época também fazia frio. Ah, mas que noite mais estranha, vovó. Uma noite extraordinariamente triste e longa!

Ele olhou ao redor para a escuridão, deu um espasmo com a cabeça e perguntou:

- Suponho que você já foi às leituras dos doze evangelhos?

- Fui - respondeu Vacilíssa.

- Se se lembra, durante a última ceia Pedro disse a Jesus: "Contigo eu estou pronto para ir até a escuridão, e até a morte." E o senhor lhe respondeu: "Te digo, Pedro, não cantará o galo hoje até que você me tenha negado três vezes, dizendo que não me conhece." Após a ceia, enquanto Jesus se angustiava mortalmente no jardim, o pobre Pedro, de alma cansada, enfraquecera-se, sentira os anos pesarem em suas costas e não conseguira de jeito nenhum lutar contra o sono. Adormeceu. Depois, você já ouviu: Judas na mesma noite beijou Jesus e o traiu com seus inimigos. O levaram então acorrentado até o sacerdote e o espancaram, e Pedro, prostrado, incomodado pela angústia e pela ansiedade, entende, sem ter dormido, tendo pressentido que aqui na terra estava para acontecer algo terrível, seguiu. Ele amava Jesus apaixonada e imemoravelmente, e agora via de longe como o espancavam.

Lukéria deixara as colheres e agora direcionava um olha fixo ao estudante.

- Chegaram ao sacerdote, - continuava - começaram a interrogar Jesus e ao mesmo tempo os trabalhadores acenderam no meio do pátio um fogo, pois estava frio, e se esquentavam. Perto da fogueira com eles estava Pedro, e se esquentava, assim como eu, agora. Uma mulher, vendo-o disse: "Este aqui também estava com Jesus", ou seja, ele, puxa, precisava ser levado ao interrogatório. E todos os trabalhadores que se encontravam por perto da fogueira, deve ser, olharam desconfiados e severos para ele, porque Pedro se incomodara e dissera: "Não o conheço." Um pouquinho depois mais alguém reconheceu nele um dos discípulos de Jesus e disse: "Você também é um deles." Mas Pedro mais uma vez negou. E pela terceira vez alguém se dirigiu a ele: "Não foi você que vi com ele hoje no jardim?" E Pedro negou pela terceira vez. Depois disto, imediatamente cantou o galo e Pedro, assistindo de longe a Jesus lembrou-se das palavras que este lhe dissera na ceia. Lembrou, voltou a si, saiu do pátio e amargo, amargo chorou. Nos evangelhos está escrito: "E partira, chorando amargamente.". Eu fico imaginando: o jardim quieto, quieto, escuro, escuro, na escuridão mal se ouve o chorinho surdo...

O estudante suspirou e pensou. Continuando a sorrir, Vacilíssa de repente soluçou e lágrimas grandes e abundantes escorriam por suas bochechas, e ela afastou com as mãos o rosto do fogo, como que com vergonha de suas próprias lágrimas. Lukéria, olhando fixamente para o estudante corou, e sua expressão se tornou pesada, tensa, como numa pessoa que suporta uma dor imensa.

Os serviçais voltavam do rio, e um deles montado num cavalo já estava perto, e a luz do fogo tremeluzia em sua figura. O estudante desejou às viúvas uma boa noite e seguiu em frente. E mais uma vez rodearam-no as trevas, e os dentes começaram a tremer. Soprava um vento cruel, e de fato retornava o inverno, não parecendo em nada que depois de amanhã seria já Páscoa.

Agora o estudante pensava em Vacilíssa: se ela havia chorado, tudo o que havia acontecido naquela noite estranha com Pedro fazia para ela algum sentido...

Olhou em torno. O fogo solitário calmamente piscava na escuridão, e ao seu redor já não se viam as pessoas. O estudante novamente pensou que, se Vacilíssa chorara, e sua filha se incomodara, então obviamente aquilo que contara, ocorrido dezenove séculos atrás, possuía relação com o presente - com as duas mulheres, e claro, com aquela aldeia deserta, com ele próprio, com todos os homens. Se a velhinha havia chorado, não havia sido porque ele sabia contar histórias tocantemente, mas porque Pedro lhe era próximo, e porque ela, com todo o seu ser se interessara por aquilo que havia ocorrido na alma de Pedro.

E uma alegria de repente levantou-se em sua alma, e ele até mesmo teve de parar por um minuto, para recobrar o fôlego. O passado, ele pensava, está ligado ao presente por uma corrente ininterrupta de acontecimentos, que brotam um do outro. E a ele lhe pareceu que acabara de ver ambos os finais desta corrente: tocara a um deles, recuando assim do outro.

E quando se aprumara no barquinho para cruzar o rio, e depois, levantando-se pela montanha avistara sua aldeia natal e o leste, por onde luzia numa faixa fina a gélida aurora carmim, pensou que a verdade e a beleza, que haviam dirigido a vida dos homens lá no jardim e no pátio do sacerdote continuavam ininterruptamente até os dias de hoje, e, ao que lhe parecia, sempre constituiriam o principal na vida humana e na Terra de forma geral; e a sensação de juventude, saúde, força - ele tinha apenas vinte e dois anos - e a inexpressável doce espera da felicidade, da invisível e secreta felicidade tomaram conta dele aos pouquinhos, e a vida lhe parecera deliciosa, maravilhosa, e cheia do sentido mais elevado.


1Faça fortuna: trata-se de uma antiga superstição russa que diz que a pessoa que não for reconhecida num encontro enriquecerá.

(Nota da tradução: "O estudante" foi escrito por Anton Pávlovich Tchékhov em 1894.)

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