- Por que a demissão? - Sinélnikov olhou cansadamente para Kólka.
- Pagam pouco.
- Quanto?
- Quanto o quê?
- Quanto para você é pouco?
- Sessenta, setenta. Às vezes até menos...
- Hm. E exatamente de quanto você precisa?
Kólka começava a se irritar.
- Eu? De três vezes isso.
Sinélnikov não sorriu e nem se admirou com a insolência de Kólka.
- Não é suficiente, então?
- Não é nem que não é suficiente, chega a ser vergonhoso: tenho braços e pernas saudáveis, nunca tive preguiça de trabalhar e... bah! - Kólka reclamava muito do seu salário, se incomodava, não gostava nada da diretoria do sovkhoz e por isso não estava mais afim de chover no molhado.
- É isso.
- E agora, para onde?
- Agora? Cavar buracos para fundações. No quilômetro trinta e sete.
- Especialização no bolso... e... cavar buracos para fundações! Você é um motorista de segunda classe!
- Fazer o quê?
- Beber menos vodka. - Sinélnikov falava da mesma forma indiferente, fraca, e sem qualquer interesse olhava para Kólka. Impossível entender por que raios ele abria a boca, perguntava.
Kólka se fixou nos pequenos olhos cinza de Sinélnikov, inflou as narinas e disse (como depois afirmara para todos) educadamente:
- Quero na mesa minha carteira de trabalho. Sem burocratismo. Sem essas, sabe, coisinhas.
- Quais, essas “sabe”, coisinhas?
- Eu não vim ter aula, certo? Vim pegar minha carteira de trabalho.
- E uma aula não seria nada mal, diga-se de passagem. Não veio ter aula... Para se entupir de vodka o dinheiro sobra, mas aqui, olha só, pagam pouco – estranhamente Sinélnikov não se agitava nem neste momento, não falava de alguma outra maneira... mais rápido, mais maldoso, nem mesmo franzia a testa. - Bebuns. E mamam, mamam, mamam essa vodka! Como é que não se cansam? Dá para ficar louco! Bebuns infelizes.
Por essa Kólka não merecera. Ele bebia, claro, mas assim para ser chamado de “bebum” e ainda “infeliz”... não, que absurdo. No entanto mais estranho ainda é que não eram as palavras que irritavam Kólka mas sim o tom monocórdico, desanimado e bovino com que os dois se falavam, como se fosse alguém desesperançosamente ruim, incorrigível, como se já estivessem cansados dele e não quisessem com nem mesmo se irritar, dessa forma, falando como se fosse obrigação, já sem qualquer esperança.
- Que porcaria é essa, hã? - se incomodou Kólka – O quê? Bebeu tinta foi? Foi o quê que começou a dar coice? Olha só, sentou aí em cima e vamos lá, dar chibatadas nos outros! Quer o quê? Não tem mais nada para fazer não, seu burocrata?
Sinélnikov ouvia tudo calmamente, como numa reunião: ele até mesmo apoiara a cabeça com as mãos, como se faz nos auditórios quando se escuta uma costumeira e inofensível crítica.
- Continue.
- Eu vim pegar a minha carteira de trabalho, não tenho nada que continuar. A ordem de demissão foi assinada? Assinada. Agora a carteira de trabalho.
- Você quer que eu te meta uma advertência?
- Pelo quê?
- Revolta. Indisciplinaridade... Uma pequeeena notinha na sua carteira e você dança, bonitão. - Sinélnikov se divertia com o nervosismo de Kólka, mas mesmo assim se divertia de uma maneira desanimada, inexpressiva. Kólka, por sua vez, se segurava.
- E pelo quê você me dá uma advertência?
- Escrevo a nota, aí você chega para tapar teus buracos e te dizem: “Opa, não não não queridão, que que é isto aqui? Não, não precisamos desses aqui, não.” E pronto. Lá se vão seus duzentos rublos tapando buracos. Não empina muito o nariz não que ele começa a escorrer, seu bostinha.
- Quem? - perguntou Kólka. - Que foi que você disse?
- “Quem” o quê?
- Eu? O que você disse?
- Bostinha, eu disse.
Kólka agarrou o tinteiro com e arremessou a tinta no terno branco de Silnélnikov. E assim acontecera tudo... Kólka nem sequer havia conseguido parar para pensar quando apanhara o tinteiro... atirou, e ponto. Sinélnikov tirou as mãos no rosto. Pensou um instante e rapidamente tirou o paletó, mantendo-se em pé com os braços esticados, de modo a esperar a tinta escorrer até o chão. A tinta escorrida, Sinélnikov cuidadosamente sacudiu o paletó, esperou mais um pouco e depois pendurou-o nas costas da cadeira. Depois disso verificou a camisa e as calças: não, não dera tempo de escorrer para a camisa e as calças ainda estavam limpas.
- Bem... escolha: vinte rublos pela lavagem a seco e pela tinturaria de todo o traje ou eu teprocesso por ofensa violenta.
- Você me ofendeu primeiro...
- Eu sim, mas com palavras, ninguém ouviu... agora a tinta, olha aí, na cara. Além do mais, tinta sintética. - E de novo o tom de Sinélnikov era chapado, incolor. Que pessoa impressionante! - Sua sorte é que eu já queria mesmo mandar pintar. Mas não sei nem se vão aceitar na lavanderia com tinta sintética... Vinte e cinco rublos. - Sinélnikov desenganchou o telefone. - Escolha. Ou eu ligo para a polícia.
Kólka já tinha entendido que era melhor pagar. Mas o incomodava o fato de que o legalistazinho na estava aumentando o preço na cara dura.
- Epa, por quê vinte e cinco? Primeiro vinte e depois assim, vinte e cinco? A gente ficando aqui um pouco mais e você sobe até cinquenta?
- Cinco rublos é a ida até a cidade. Ida e Volta. Não tinha pensado nisso logo que falei.
- Quê? Dois e meio por um dos sentidos? Qualquer caminhoneiro te leva de carona por cinquenta copeques!
- Não quero ir de carona. Posso ir de carona, mas na volta pego um taxi.
- Opa, olha o barão aí! “De táxi!”
- Isso, de táxi. Porquê, algum problema?
- Não, nenhum, mas assim às custas dos outros... Vai dizer que não se envergonha!
- Você me sujou de tinta – você não se envergonha? E mais, eu, pelo meu próprio traje vou me pendurar na carroceria de algum caminhão? Vinte e cinco. Pode escrever.
- O quê?
- O termo.
Sinélnikov entregou-lhe uma folha de papel.
Kólka com desgosto a apanhou...
- Como escrever então?
- Eu, fulano de tal – nome, sobrenome – me comprometo a pagar ao camarada Sinélnikov Viachesláv Mikháilovich vinte e cinco, travessão – rublos e zero zero copeques...
Kólka sorriu maliciosamente, balançando a cabeça.
- “Zero zero copeques”! Mandãozinho de merda...
- Zero zero copeques pelo estrago deliberado de traje branco do camarada Sinélnikov V.M.
Kólka parou de escrever.
- Para quê escrever “deliberado”? Já que eu estou concordando em pagar de boa vontade,para quê escrever assim? Alguém depois vai ler e aí vão começar a … encher o saco.
- Tá bom, escreve “pelo estrago de traje do camarada... pelo estrago de traje branco docamarada Sinélnikov V.M.”
Kólka ao escrever pulara a palavra “camarada”. Anotara apenas: “traje branco de Sinélnikov V. M.”.
- ...Com tinta sintética...
Kólka pegou o tinteiro e o examinou.
- Por caso caneta-tinteiro leva tinta sintética?
- Claro! Nós escrevemos as folhas de balanço apenas com tinta sintética.
- Escritores, saco... - resmungou Kólka.
- Assinatura, data.
Kólka assinou. Colocou a data. Sinélnikov pegou o papel.
- Quanto você recebe?
- Como é que vou saber? Você é quem sabe.
- Venha depois do almoço para receber. E para pegar a carteira.
Kólka se levantou.
- Você... olha, não fale para ninguém que... me arrancou vintão. Chega nos ouvidos da mulher e daí... sabe lá... Escreve alguma coisa aí.
- Certo.
Kólka foi até a porta. Chegando ao batente parou e olhou para o homem gordo de sobrancelhas brancas. Sinélnikov também olhava para Kólka.
- O quê?
- Êê... - disse Kólka, abaixou a cabeça e saiu da sala.
No corredor xingava baixinho para si mesmo.
“Vintão... saí com o rabo entre as pernas. Enrolado entre as pernas”. Mas então ele se lembrou de que na estrada agora iria ganhar de duzentos a duzentos e cinquenta rublos tapando buracos, e se acalmou. “Ah, que se queimem todos no inferno – pensou – e chega de reclamar!”
1 sovkhoz: abreviação de soviétskoe khoziáistvo, nomeclatura usada para designar fazenda coletiva controlada pelo Estado na antiga URSS.
Nenhum comentário:
Postar um comentário